quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Sob o domínio do medo

"Não queremos regimes autoritários, não estamos em guerra, nossos maiores problemas não são os crimes, é a desigualdade que se expressa em nossas cidades de maneira gritante."
Silvio Caccia Bava* - 06.02.13
 




A televisão destaca a todo momento os crimes na cidade. Como se não houvesse nada mais importante para veicular sobre a nossa vida em sociedade. Há programas especiais que noticiam e mesmo acompanham perseguições policiais a suspeitos ou criminosos. Uma especial atenção para os casos de crimes, perseguições e prisões. É a produção de um imaginário de guerra, que coloca como inimigos não só os criminosos, mas todos os atos e movimentos de protesto contra a ordem instituída. Na figura do preso se criminalizam os negros e os pobres. Mas o mais importante é que os crimes ocupam também os noticiários. Ocupam um lugar central nas informações recebidas pelos cidadãos.

Com essas informações criam-se o medo, a desconfiança, a contração do espaço público, o reforço ao individualismo, a necessidade de proteção. A população, assustada, aceita a militarização da gestão da segurança pública, que é a substituição do controle democrático por regras de ocupação militar, chegando mesmo, em alguns casos, em algumas regiões, ao toque de recolher.

As classes mais abastadas se fecham em condomínios e shoppings, contratam seguranças privadas, e para as áreas mais críticas da cidade são tomadas medidas radicais pelo poder público, como a ocupação militar de favelas nos morros do Rio de Janeiro. Em nome da segurança, do combate ao crime, a aceitação da arbitrariedade.

À sombra do Estado, ou mesmo dentro do aparato policial, formam-se milícias e grupos de extermínio. O cenário construído, que justifica as arbitrariedades, é de guerra, de controle do território.

É um retrocesso enorme em termos democráticos, de qualidade de vida, das liberdades, dos direitos civis e políticos. Substituímos a negociação democrática dos conflitos de interesses pelo uso arbitrário da força.

É preciso desmontar essa narrativa. Não queremos regimes autoritários, não estamos em guerra, nossos maiores problemas não são os crimes, é a desigualdade que se expressa em nossas cidades de maneira gritante. Sem uma melhor redistribuição das riquezas, sem assegurar o direito à cidade para todos os seus moradores, vivendo a exclusão e a pobreza, os amplos setores empobrecidos ficam condenados a partilhar as migalhas. E isso gera conflitos. A pressão é pela democratização da política, para que as maiorias possam disputar os governos e os recursos.

A capacidade de pressão da sociedade para se opor à militarização da gestão da segurança pública é baixa. Até porque parte da opinião pública é a favor. E o que vemos é uma crescente tolerância com o avanço das arbitrariedades que comprometem a democracia e o estado de direito.

Foi muito débil a reação da sociedade civil às chacinas ocorridas no ano passado em São Paulo. Morreram 1.368 pessoas a tiros, em muitos casos mortas por policiais. A cidade está assustada. A narrativa que as explica limita o foco ao imediato, ao cotidiano, não pensa esses acontecimentos num quadro maior, em que eles façam parte e ganhem sentido.

“A compreensão coletiva dos conflitos sociais ficou cada vez mais reduzida à esfera cotidiana imediata, e os alvos das atividades de manutenção da ordem pública tornaram-se cada vez mais territorializados”, diz em seu artigo Luiz Antonio Machado (pág. 6).

Ao tornar a violência criminal uma ameaça à continuidade das rotinas cotidianas, a mídia conservadora e os governos estaduais propõem a ocupação militar e a “pacificação” como soluções.

Há um sentimento generalizado de insegurança, que é crescente. E esse sentimento respalda atores políticos que promovem um retrocesso nas políticas de segurança pública de décadas, voltam políticas repressivas e de controle, a violação de direitos, os grupos de extermínio, a execução sumária de suspeitos pela polícia. A isso se soma o envolvimento de agentes da polícia com o narcotráfico, em muitos casos passando a defender interesses comuns.

A resposta do governo é mais repressão, ocupação militar de territórios, arbitrária imposição de regras de convivência nos territórios ocupados. Não interessa se os interesses da especulação imobiliária se aproveitam dessas intervenções ou se apoiam nelas. Não interessa a questão da defesa dos direitos. A “pacificação” serve para preparar a região para o advento da Copa e das Olimpíadas, e serve aos interesses do capital imobiliário.

Num clima como esse, de militarização da gestão pública, começam a surgir aberrações, como desdobramentos dessa cultura do controle. Por exemplo, a autorização legal, em São Paulo, para internar viciados em crack contra a vontade. Uma internação em instalações que sedam com drogas seus internados, internação que não tem data para terminar...

É uma discussão ampla e complexa que contrapõe liberdade e democracia a militarização e segurança. Não é só sobre o comportamento da polícia ou as políticas de Estado. É também sobre quanto nossas sociedades estão dispostas a se sujeitar a governos militarizados em nome da segurança. Mas essa discussão nós não vamos encontrar na TV.

*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
http://www.cpers.org.br/index.php?cd_artigo=444&menu=36

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