sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Ficha Limpa: o caso de Novo Hamburgo

10.08.12
A Lei da Ficha Limpa materializou a aspiração do povo brasileiro para conter a impunidade em relação aos crimes cometidos contra o Erário por candidatos que postulam uma representação política, após terem sido condenados por um órgão colegiado (com mais de um juiz), mesmo nas situações em que haja possibilidade de recurso. Esse é o espírito da norma legal conhecida como Lei Complementar n° 135/2010, aprovada por iniciativa popular com 1,3 milhão de assinaturas: coibir o deboche que imortalizou e transformou em sinônimo de corrupção alguns sobrenomes de projeção nacional, com fortunas desviadas dos cofres públicos para paraísos fiscais.

Corrupção, no Dizionario di Politica (1983), organizado pelo pensador italiano Norberto Bobbio et alli,“designa o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troco de recompensa”. No Brasil, da presidenta Dilma, o conceito se estendeu dos corruptos (agentes do Estado) aos corruptores, a saber, os agentes privados que se apresentavam como porta-vozes dos interesses de pessoas jurídicas mas que, com a denúncia de ilícitos, negavam ter dado autorização para alguém postular em seu interesse. Com tal artimanha, as empresas antes livravam-se de qualquer censura pelo comportamento de seus empregados. Conforme as disposições agora em vigor, no entanto, empresas envolvidas em malfeitos estão impedidas de participar de novas licitações públicas. Trata-se de um colossal avanço republicano.

Ainda que os meios de comunicação, de longo alcance, não costumem enfatizar as medidas governamentais tomadas para resguardar a coisa pública, o fato é que somos o país que mais vem combatendo as práticas de corrupção no mundo. Não à toa, em dezembro de 2008, o Brasil foi vencedor na categoria “Finanças e Administração Pública” da 11° edição do Prêmio CONIP de Excelência e Inovação na Gestão Pública, através do qual obteve o reconhecimento da comunidade informática nacional por todos os benefícios e facilidades colocados à disposição dos cidadãos na promoção da transparência pública e fomento ao exercício do controle social. A criação da Controladoria Geral da União (CGU), em abril de 2001, já apontava nessa direção.

Não há mais razão para que alimentemos o que Nelson Rodrigues chamou de “complexo de vira-lata”, ao associar o fenômeno da corrupção à própria identidade do brasileiro. Como se lê na introdução do mais importante livro coletivo sobre o tema, Corrupção: ensaios e críticas (2008), editado pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, “por essa visão, o Brasil seria inevitável e definitivamente corrupto devido a certos valores e práticas que, presentes desde a origem, tornaram-se parte de seu caráter e de seu jeito de ser”. A corrupção não está em nosso DNA, senão que aproveitava-se de desvãos institucionais que vêm sendo corrigidos graças à vontade política do governo federal e à pressão de entidades da sociedade civil.

A Lei da Ficha Limpa encontrou um contexto favorável ao fortalecimento de mecanismos de controle, no Executivo e no Legislativo. Mas, nem por isso, deve ser entendida como justa pois contém claras imperfeições e imprecisões, suscitando evidentes injustiças por não obedecer ao princípio da proporcionalidade da pena em face das condutas que veda aos candidatos a postos eletivos no sistema de representação política. Ao inserir no mesmo artigo “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos de campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma”.

Assim, a Lei traça uma equivalência entre ilícitos, passíveis da mesma pena de inelegibilidade, que vão do flagrante de corrupção à presença desavisada em um simples ato de inauguração de uma obra pública, como aconteceu em 2004 envolvendo os candidatos então à Prefeitura de Novo Hamburgo, Jair Foscarini (PMDB) e Tarcísio Zimmermann (PT), a convite do ex-governador Germano Rigotto. À época, a Justiça Eleitoral anulou as eleições e determinou a realização de outro pleito. Essa foi a penalidade aplicada. Causa espécie, porém, que o Ministério Público do Município tenha acatado o pedido de impugnação da candidatura à reeleição do atual prefeito da cidade, Tarcísio Zimmermann, e que o juíz de primeira instância tenha acompanhado o parecer. Significa uma segunda punição, completamente desproporcional ao objeto e contrária à tradição jurídica no Estado de Direito Democrático.

Vale lembrar, a propósito, que no corpo da própria Lei (Artigo 1°, Parágrafo 4°) se faz a ressalva de que “a inelegibilidade prevista na alínea e do inciso I deste artigo não se aplica aos crimes culposos e àqueles definidos em lei como de menor potencial ofensivo”. É o caso, seguramente, por uma questão de bom senso, o qual deve nortear sempre as decisões judiciais para conquistar, não a legalidade que lhe é imanente, mas a necessária legitimidade junto à opinião pública.

Como salientou a prestigiada Página 10, do jornal Zero Hora(06/08/2012), referindo-se à injusta e incompreensível ameaça que paira sobre a candidatura de Tarcísio Zimmermann em NH, oito anos após haver comparecido a um simples ato oficial em ambiente público, é preciso evitar “o risco do exagero”. Não se questiona a vigência da Lei da Ficha Limpa, que visa afastar da cena legislativa aqueles que infringiram as regras da probidade administrativa: o que se quer é assegurar a adequada proporção entre o que se julga como ilícito e a penalidade imposta ao seu autor. Não reside aí a divisória que separa a justiça da injustiça?

Luiz Marques é professor de Ciência Política da UFRGS
Publicado dia 09/08/12 | 05:44 em:
http://sul21.com.br/jornal/2012/08/ficha-limpa-o-caso-de-novo-hamburgo/

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