Do blog Ensaios de Gênero - 21.12.13
Circula por aí, vez ou outra, uma discussão a respeito de um suposto processo de doutrinação protagonizado pelas escolas – em especial por docentes da área de humanas – cujo objetivo seria alimentar uma ideologia comunista entre estudantes do ensino fundamental e médio. Existem até ONGs, como a Escola Sem Partido, para aglutinar denúncias e promover ações. Com o pretexto de limpar a escola da “ideologização”, pergunto: qual é a ideologia que existe por trás disso?
A rigor, também sou contra uma “doutrinação”. Não concordo que professoras/es ensinem a sua turma de alunos/as a optarem por determinadas ideologias ou terem certas preferências partidárias, sobretudo se considerarmos que os docentes, em sua posição de autoridade, teriam uma forte influência sobre um conjunto de estudantes que ainda está em formação e que, apesar da internet e outras fontes, pode ter a instituição escolar como uma referência para formularem opiniões e perspectivas.
O que se coloca aqui, no entanto, é o velho debate sobre ser ou não possível educar sem que haja uma concepção política por trás, discussão similar à possibilidade de haver imparcialidade nos meios de comunicação. Duas discussões, a meu ver, inócuas. Retirar da educação o seu caráter político é extrair todo o seu sentido. O que é a escola pública senão uma iniciativa essencialmente política de escolarizar toda a população brasileira, dar a ela capacidade de ler e escrever, de fornecer conhecimentos sobre o seu tempo e o espaço, de lhe fornecer autonomia e informação para pensar por sua própria conta? Se isso não é política, já não sei mais do que se trata.
Existe ou deveria existir, tanto nas políticas públicas quanto nos currículos escolares, um marco político muito claro: a construção de uma sociedade democrática. Vivemos em um sistema político que se pretende uma democracia. Não o é, mas lembra. A educação em um Estado democrático deveria, em primeira mão, zelar pelos valores democráticos. Não estou nem discutindo, aqui, uma formação crítica e tal, estou apenas relatando o óbvio: que escolhas políticas atravessam a constituição de nossas escolas. O respeito, a cidadania, a igualdade, a justiça, a gestão democrática – longe de serem paranoias de “militantes travestidos de professores”, estão presentes na nossa própria Constituição – deveriam ser aspectos inerentes à escola, bem como às demais instituições públicas.
Aprender que o Brasil foi “descoberto”, que não existiram conflitos armados na Guerra Fria, que os “tigres asiáticos” são exemplos de desenvolvimento etc, são conteúdos absolutamente politizados. Implicam, por exemplo, em minimizar os danos da colonização e da dominação cultural, em ignorar os massacres e golpes que aconteceram no pós-guerra (seja do lado dos EUA, seja do lado da URSS), em negligenciar trabalhadores/as asiáticos/as ganhando salários miseráveis para alimentar o capital externo.
Há política em tudo isso. Mas quando a patrulha da “escola sem ideologia” vem à tona, é para defender uma despolitização bastante parcial. Falar de “Descobrimento”, pode. Mencionar reforma agrária, não pode. Ensinar nomes de rios e capitais, pode. Discutir a questão racial, não pode. Passar os valores da “família”, pode. Debater casamento homo-afetivo, não pode.
Iniciativas que procuram neutralizar a suposta doutrinação, entre as quais a própria Escola sem Partido, são de uma desfaçatez tamanha. O cinismo desses grupos não esconde que o “sem Partido” é partidário, sim, de uma concepção ideológica evidente: a ideologia liberal conservadora, alheia à agenda dos direitos humanos, avessa aos movimentos sociais, incapaz de sustentar sequer a democracia capenga que a gente tem.
Não me assusta que este cerco armado contra qualquer formação crítica – repito, dentro dos marcos da nossa democracia – seja a maior opositora à incorporação das disciplinas de sociologia e filosofia nos currículos. É óbvio. O que são essas disciplinas senão um campo para o sujeito repensar seu papel na sociedade, repensando-a por inteiro? Dá no que dá: jovens saem da escola sem ter as mínimas noções do sistema político, da sociedade, do modo de produção econômico etc. Saem, portanto, despolitizados.
Ao mesmo tempo, termos e expressões como “desigualdades sociais”, “hierarquias”, “dominação”, “hegemonia”, entre outras, são abolidas do vocabulário escolar. Ensina-se a usar a redação para redigir currículos e a matemática para fazer cálculos financeiros, sem levar em conta que a necessidade de elaborar currículos para se trabalhar no setor financeiro faz parte de um momento histórico em que vivemos, de uma determinada circunstância e que, por isso, pode ser modificada, questionada, aperfeiçoada ou mesmo desmontada pelos mesmos sujeitos que são doutrinados pela farsa de uma “escola sem ideologia”.
O silêncio que se pretende impor é uma forma brutal de calar as desigualdades, injustiças e opressões que estão às vistas de toda a sociedade e que, elas mesmas, entram com força na própria escola: a violência, a discriminação, a marginalização, a repressão policial. Não sou apenas eu quem está falando (ou tirando elementos de uma cartola meramente ideológica): essa é a realidade que uma boa parcela dos/as estudantes pobres da periferia vivem, os quais compõem significativamente a massa de crianças e jovens das escolas públicas.
Uma coisa é exigir que os/as professores/as tenham cautela ao trabalhar com tais conteúdos com a sua turma, outra coisa é pretender a extinção desses assuntos. Para que o Estado possa enfrentar esse nó, é importante que esteja esclarecida qual é a noção de cidadania que vai nortear a formação das crianças e jovens, qual é o currículo que se pretende, quais valores serão discutidos, qual moral será trabalhada. Em nenhum desses aspectos estamos falando de uma pretensa neutralidade. Cabe definir, coletivamente com a sociedade civil, que concepção política vai dar o tom da educação.
Fonte: Jornalismo B
http://jornalismob.com/2013/12/04/qual-e-a-ideologia-por-tras-de-uma-escola-sem-ideologia/
Por Noé M. Oliveira, Professor de Filosofia.